Isso não é exata ou diretamente uma crítica, mas algumas reflexões suscitadas pela peça de Luiz Paixão. Foi muito bom refletir sobre a loucura diante de uma encenação bem arquitetada. Sigo refletindo aqui, por uma rememoração.
As pessoas que se mandava para Barbacena eram inconvenientes porque espelhavam, para as pessoas “normais”, suas faces que não queriam ver. Hipocrisia, fracasso, ignorância, apatia, desânimo crônico, crueldade, covardia, homofobia e todos os outros tipos de medos. Os “loucos” estão aí para mostrar que os sistemas sociais, sejam eles políticos, econômicos, religiosos, esportivos, culturais, filosóficos ou outros, não estão servindo bem ao homem, e que os homens, oprimidos pelo medo e pelo ódio, não sabem como servir a si mesmos. Os loucos mostram isso da forma mais explícita. Há inúmeros sinais disso no dia-a-dia que são menos visíveis e que são empurrados para debaixo do tapete. Os loucos também foram tirados de vista. Como pode ter havido uma época em que pais, parentes e “amigos”, por causa de meros incômodos mínimos ou maiores, enviavam pessoas para um depósito de lixo como é o manicômio? Sujo, sufocante, degradante, ambiente criadouro de todo tipo de vermes mentais. Mas qual será o custo? Será que a alma desses alienistas que condenam seres humanos à tortura continua a mesma? Toda desilusão que se pensa ver nos manicômios é podridão das almas dos “normais”.
A sociedade como um todo está mais feliz, ou menos miserável, agora que manicômios como os de Barbacena estão sendo eliminados. Mas não podemos esquecer dos sofredores mentais prejudicados pela família dentro de casa e daqueles que moram sozinhos ou nas ruas. É necessário buscar conhecer as razões da exclusão dos “loucos”, porque elas serão as mesmas que hoje nos impedem de evoluir.
Ao longo da peça pode-se rir da loucura, mas, como é de se esperar de uma boa dramatização, mesmo aquele público que associa teatro a uma limitada palhaçada circense receberá, ainda que no inconsciente, uma visão. E essa visão é de abismo. Aquele que separa as pessoas inconvenientes que se mandava para Barbacena das “pessoas normais”. Mas também, e é o mesmo, aquele que separa as pessoas de seus desejos recalcados, e aquele que separa o egoísta do amor (e da realização). Esse abismo dá vertigem, como a dos trapezistas circenses, quando voam sem rede de segurança por baixo. Dá medo de ser louco e, ao mesmo tempo, de não se realizar. Algumas pessoas parecem já vir ao mundo desesperadas por realizar-se plenamente, e esse me parece o caso de muitos “loucos”. Afinal, a realização só pode ser por inteiro, incluindo seu lado obscuro, “louco”. Somos desafiados a compreender o que está por trás desta palavra entre aspas. Pode ser doloroso. Mas apenas se nos mantivermos na camisa de força das tradições moralistas. É preciso soltar-se do balanço e voar no escuro, com os músculos tesos em busca de pouso para escapar da covardia dos preconceitos. Covardia banal (Arendt), que atingiu dezenas de milhares de pessoas em Barbacena. O homem médio é covarde, ele morre a cada momento porque não tem a dignidade de se enlouquecer um pouco (Morissette). Mais ou menos tudo o que devemos esperar de nós mesmos é enlouquecer da melhor forma possível.