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A peça Eu Capitu traz a história de uma mãe (Helena) e uma filha de doze anos (Ana) no momento pós-divórcio, em que a mãe está lutando para obter sustento e descobrindo a vida em liberdade, parecendo alegre, enquanto a filha está confusa e triste. Ana queria passar mais tempo com Helena, que parece negligenciá-la. Ela está se preparando para uma prova sobre o livro Dom Casmurro. A relação das duas, quando juntas, é de uma cumplicidade divertida. A mãe a ensina, emblematicamente – sugerindo a defesa da liberdade sexual, a dançar com os quadris. E pede que a filha fale sobre o livro. A dificuldade dela para lembrar da história remete a sua dificuldade de lidar com a mãe e com o divórcio. – E aí, Capitu traiu, ou não? – O quê?! A mãe manda que leia de novo até ter uma opinião. É claro que o problema de família compromete o estudo da menina. Pode-se pensar que a menina sofre com a falta do pai, e que identifica o narrador criado por Machado de Assis, de alguma forma, com ele.
Enquanto Capitu é acusada de traição por Bentinho, Ana sente que Helena está fazendo algo de errado. Ela se comporta de forma excêntrica, com objetos chamativos e engraçados, como um casaco brilhante, um chapéu de neon, chega em casa com dezenas de sacolas. Diz que vai ao mercado – e cada dia certo produto está em oferta imperdível, e que vende tortas. Algumas sugestões há de que ela está vendendo o corpo. A filha vai questionando, meio inocentemente, a mãe. A mãe tenta distrair a filha, demonstrando medo de ser depreciada pela filha, caso descubra seu novo meio de vida. Todo sofrimento e alienação são causados pelo viés machista da cultura dominante que reproduz incansavelmente na psiquê das pessoas (será que estamos falando de obsessores especializados em “cultura cristã”?) a condenação de mães solteiras, independentes ou da pessoa que, muitas vezes, não vê outra saída para uma vida “razoável” que não a prostituição.

Em alguns momentos o telefone toca com um som sinistro e irritante. Sem saber que fala com a filha, o pai quer voltar com a mãe, fala de amor, mas vomita um amor tóxico, que a chama de burra e quer manipular e oprimir.
Surge o conflito entre mãe e filha. Ana fala que depois da separação a vida virou um inferno. A mãe responde que inferno há desde que a filha nasceu.
Antes desse conflito (difícil aqui ser cronológico), Ana adormece lendo o livro e surge em seu sonho uma figura muito curiosa e divertida que se torna sua amiga e que vai colocando suas atitudes e as de sua mãe em perspectiva, à medida que questiona o viés do narrador na obra de Machado de Assis. Dois pontos essenciais são levantados por ela: 1. Quando não se sabe a resposta a uma pergunta deve-se fazer outras perguntas; 2. Deve-se questionar a proposição mesma da pergunta famosa: Capitu traiu Bentinho? Ela tenta pescar um objeto que não sabe o que é. Isso relaciona essa personagem, que ao final se apresenta como Capitu, com Helena. Ao final, esse objeto, se diz, poderia ser qualquer um dos vários objetos que a mãe de Ana busca para preencher algum vazio interior.
Seguindo a sugestão da personagem: será que a primeira traição não foi de Bentinho, um abandono ou desprezo emocional da esposa, tendo Capitu “traído” ou não? Será que não se coloca um peso excessivo sobre a “traição”, como se a hipótese justificasse o comportamento de Bentinho em relação a Capitu e ao filho? Será que uma tal “traição” não poderia ser perdoada? Essa última é uma pergunta radical que só cabe aos amores mais complexos e intensos, mas é necessária. Até para a possibilidade de felicidade – remota – do próprio Bentinho.
A violência do marido de Helena pode, comparativamente, ressaltar a violência seca mas cruel de Bentinho ao mandar a esposa e o filho para a Europa.
O conflito ressurge depois que Ana, sem saber o que fazer e chorando, fala para o pai sobre o comportamento da mãe ao telefone. Helena a confronta e descobre que ela falou com o pai. Mais ou menos aí ela volta da rua dizendo que “não estava conseguindo vender a torta” e que sofrera uma agressão. Ana se comove. Logo depois disso, Helena chega em casa falando para a filha arrumar tudo porque têm que ir embora por sua segurança. Ana pede, delicadamente, para a mãe contar a sua história. Helena resolve contar. Ela relata os abusos que sofrera do marido, a segunda chance dada e a reincidência. Fala que ama a filha e que está com receio de que algo aconteça. Ana, chorando, pede perdão para Helena. Essa lhe diz, enfaticamente, que não é sua culpa. Nesse momento ela se revela… uma boa mãe.
A peça mostra a força das mulheres sem homens e a fragilidade dos homens sem as mulheres. Ela mostra como se pode cultivar julgamentos equivocados quanto a membros da família por falta de diálogo (“senta aqui e me conta sua história”) que levam à incompreensão e também ao sofrimento. Ainda podemos ressaltar que Ana passa, ainda que inconscientemente, por um processo de superar a narrativa masculina culturalmente dominante e presente na sua mente e no Dom Casmurro para poder ver sua mãe como uma lutadora e mulher forte.
Me parece que essa peça fala muito sobre culpa. Sobre a culpa que resolvemos adotar e amarrar às costas por algum motivo imbecil, por sermos “bonzinhos”, ou por darmos lugar absurdo ao egocentrismo obsessivo que não consegue colocar responsabilidades, causas e consequências fora de nós mesmos. A culpa de ser mulher. A culpa de filha, a culpa de mãe. A culpa de ser dependente, a culpa de ser independente. A culpa de questionar o status quo, o machismo, o pensamento tradicional ou o pretensamente “revolucionário”. E o alívio ao final, de abandonar a culpa, sair do alcance do ex-marido, deixar de fazer a prova sobre “Dom Casmurro” e ficar mais leve, mais feliz.