De Wim Wenders
Queria ter escrito sobre esse filme que vi no cinema há algum tempo. Revi-o agora, no streaming e aproveito a oportunidade para traçar algumas linhas. Um filme em que parece que nada acontece, e talvez por isso mais do que necessário, grato. Me lembrou de quando fiz um programa de trabalho temporário nos Estados Unidos, onde fui camareiro de um resort. Existe uma alegria reservada a pessoas que fazem os trabalhos menos desejados do mundo. Pude experimentá-la por alguns momentos. A alegria de coisas simples, como a luz do sol, as árvores ao vento, as sombras. Uma dignidade sólida, sensível no corpo cansado.
O capricho e a naturalidade de Hirayama na limpeza de banheiros públicos em Tokio, associada a sua serenidade e alegria, é uma afirmação, uma tese poderosa desse filme que salta aos olhos, incontestável e da maior relevância. Deixo vocês imaginarem, para que a memória tenha maior facilidade de preservar essa preciosidade.
Ele passa a maior parte do tempo sozinho, vemos toda a rotina do seu dia-a-dia. Molha algumas plantinhas, tira fotos, lê, toma banho em lugares públicos, vai sempre aos mesmos lugares (e encontra sempre certas pessoas) para comer e beber, anda de bicicleta… Por algum motivo, o filme não entedia, e as músicas que ele ouve no carro, em fitas k7 comovem.
Hirayama parece uma pessoa que gosta sabe viver em solitude. Como diz o título do filme, os dias do protagonista parecem completos, cada atividade parece justa e indispensável, a soma delas traz uma sensação de plenitude ao final de cada jornada-dia. Pensando além: o filme retrata apenas alguns dias mais contemplativos, talvez antes ou depois desses, o personagem principal teve ou terá relações mais próximas. Talvez alguns fiquem aflitos com a falta de relações afetivas do personagem… A sua contemplação do mundo e a arte parecem salvá-lo, de certa forma: as músicas que ouve, os livros que lê, as fotos que registra dariam sentidos a sua vida solitária. O filme mostra a tensão entre a vida isolada e a compartilhada, o egoísmo e altruísmo, muito atual, a vida da consciência individual e a possibilidade de comunhão.
Quanto a outros personagens, temos a sobrinha que se interessa por ele, a irmã que o despreza, mas lhe agradece com chocolates de que ele gosta, o colega de trabalho atrapalhado e folgado e suas relações engraçadas com uma menina e um menino com síndrome de down, uma mulher que o atende no bar e o ex-marido dela que está com câncer e bebe uma cerveja com Hirayama. Ele parece não querer se envolver muito com as pessoas, mas, ao mesmo tempo, acolhe com carinho a sobrinha, empresta dinheiro para o colega e brinca com o ex marido da mulher do bar feito criança. Ah, como é bonita também a relação dele com a bibliotecária de onde ele pega livros para ler, sempre fazendo observações curiosas sobre esses livros.
Além dos prazeres e sorrisos solitários durante a rotina, que o protagonista parece sempre ver com novos olhos, como quando sai de casa de manhã e olha para o céu, ele é chacoalhado por emoções em relação à família e à mulher do bar, que ele ouve cantar de olhos fechados e grande prazer. Não está anestesiado pela cidade grande capitalista. Ele faz parte dos trabalhadores que a constroem (quanto vale o prazer de usar um banheiro higienizado?), mantêm e que vivem a realidade, e ainda tem tempo para ouvir música, ler e fotografar. “Existem muitos mundos no mundo”, ele diz para a sobrinha. Existe a possibilidade do mundo de Hirayama, assim como a possibilidade de uma planta que nasce na fresta do concreto e dá o seu melhor para viver bem.